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O RESGATE-PARTE 3

Entrei no carro rapidamente, fugindo das gotinhas de chuva que iniciavam seu espetáculo noturno e que seriam fatais para meu cabelo, devidamente arrumado.
O carro de Antonio tinha cheiro de canela, um cheiro que sentia na sua roupa enquanto dançávamos e me abria o apetite - todos possíveis.
- Nossa, você esta deslumbrante! - Elogiou-me de prontidão com tom eufórico e surpreso. Mas é de se compreender tamanho espanto, meu tubinho  preto de costas nuas, um salto significativamente imponente e um pouco de maquiagem destoavam realmente daquela figura descabelada e desajeitava que se apresentava todas as noites.
- Obrigada!- agradeci, tímida, porem ligeiramente provocante.- Mas adianto, não saio a noite há bons anos, devo estar completamente enferrujada!
- Querida, peço desculpas até se fui arrogante quando lhe intimei, porém senti a necessidade de ser mais firme para que você rompesse esse véu que a divide e separa de todo o resto da humanidade! Você precisa se permitir..."
- Mas você nunca trocou mais de duas palavras comigo! - interrompi, impetuosa. Me assustei com minha audácia.
- Anne, a dança se avulta a qualquer entendimento. Eu te sinto e isso me basta! Sinto a energia que você emana e a que você retrai. Se me permitir, ou mesmo se não me permitir, quero extrair essa que você guarda, entende?- explicou didaticamente, como se falasse com uma criança.
- Que perda de tempo a sua, não sou nem um pouco interessante para tal fim... - respondi debochada.
-Ai que está, você é mais interessante do que percebe! Mas relaxa, vamos dançar! - me calou, colocando a mão em meu joelho, causando um alboreamento em meu corpo. Estremeci, umedeci, paralisei.

Chegamos ao jantar beneficente, toda a turma estava lá. Nos cumprimentamos e todos os rapazes me elogiaram. Eu olhava ao redor, ainda assimilando que eu era eu, Anne, a bela mulher que se comentavam em boca pequena. Antonio se mantinha ao meu lado, mas era extremamente assediado por milhões de pessoas que queriam abraçar o mestre da dança. Me senti burramente enciumada e claro, me afastei.
Sentei-me em um mesa sozinha, não fazia isso por charme, mas realmente me sentia deslocada. O garçom me ofereceu um drinque e resolvi aceitar. Fiquei ali por um tempo, que me perdi na contagem, observando as pessoas interagindo, flertando e me afundando em mim, percebendo que eu não fazia parte daquilo. Não era pra mim. Odiei estar ali, odiei estar vestida daquela forma tão insinuativa, odiei Antonio por ser tão irresistível e não ser meu. Eu nem saberia administrar homem como ele.
-Boa note, a senhorita está sozinha? Posso me sentar aqui? - indagou-me um rapaz jovem, relativamente bonito.
- Estou, mas já estou de saída! -respondi ríspida, como um bicho do mato, já me levantando. - Não sem antes me conceder essa dança!- me tomou pela mão, num ato de firmeza e me conduziu até a pista. Ruborizei e senti meu rosto queimar. Percebi os olhos de Antonio fixando em meus passos até o centro do salão. Tomei coragem e fui,
-Meu nome é Mauro! Prazer. - Sussurrou em meu ouvido. - O meu é Anne!
Dançamos uma salsa muito divertida, ele me fazia rir e me senti a vontade com Mauro, me fazendo esquecer o quanto era infeliz e do meu amor platônico por Antonio.
Ao fim das três danças - consecutivas- voltei para mesa, que já estava tomada pelos colegas da academia. Resolvi tentar me entrosar e depois de alguns drinques, já estava fluindo. Sentia a falta de Antonio, mas não quis me amargurar e deixei Mauro sentar ao meu lado e me divertir. Ora, ainda sabia fazer isso.
Fim do jantar, uma muvuca danada atrás do palco, seguranças por toda a parte, me assusto com a gritaria e logo avisto Antonio, todo ensanguentado. Corro em sua direção desesperadamente (...)


To be Continued...


Vital,V.

Comentários

Os queridinhos.

Eu precisava ter...

Eu precisava ter sido a última a ser escolhida para a festa junina durante toda a minha infância. Eu precisava ter tropeçado na quadra durante a educação física no último ano do Fundamental e feito todos os garotos darem risada. Eu precisava ter presenciado cenas de agressão física e moral dentro da minha casa. Eu precisava ter visto minha mãe chorar durante noites a beira da minha cama. Eu precisava ter deixado uma mala pronta no armário ao longo dos anos, caso precisasse fugir repentinamente. Eu precisava ter ouvido que eu não podia ir à casa da Vanessa, pois a mãe dela não aceitava colegas com pais separados. Eu precisava ter sido excluída da lista da festa de debutante da Dai pois não atendia ao padrão estético das outras meninas. Eu precisava ter me sentido a pior das garotas. Eu precisava ter enfiado o dedo na gargant a diversas vezes, pois tinha ódio do meu corpo e vergonha de mim. Eu precisava ter me submetido a relacionamentos abusivos por não me sentir dign

Eu chorei pelo sistema.

Uma tarde fria de um domingo qualquer. Tudo acontecia lá fora como sempre aconteceu. As horas passavam, as pessoas grassavam gozando do seu direito de ir e vir, a fome assentava, o medo imperava, a angústia antecedente a segunda adentrava, enfim... Só mais um dia “normal”. E eu chorei.     Não no sentido poético, não de forma alegórica. [ Foi literal, foi visceral] Venho chorando desde então   - dia após dia -   de forma lancinante e,  desculpem-me a sinceridade, mas um tanto quanto colérica. Eu já chorei com Homero, Virgílio e Cervantes. Também com Drummond, com Flaubert e Assis. Hoje eu choro com Coetzee, Trotsky, Amendola, Bakunin e Marx. {Choro as lágrimas de Brecht.} Choro o sangue de Spies ,Parsons, Fischer e Engel.   Choro  ainda mais pelo João, pelo Zé, pelo Sr. Pedro, pela Dona Maria, pela Luisa, pelo Oswaldo, pelo (...) . Choro pelos meus filhos – pobrezinhos - que nem gerados foram e já estão condenados a exploração. Choro pela injustiça masca

E de repente passa...

E de repente passa... A dor que esmagava o peito, tirava o ar, embrulhava o estômago, passa... A saudade que mastigava, que corroía, que desbaratinava  simplesmente passa... O medo que cegava, que infiltrava, que assombrava... Passa também! E tudo aquilo que achávamos que nos mataria, vai se esvaindo, assim, como um copo trincado que perde lentamente a água e quando nos damos conta, já está vazio. Eu me esvaziei de você e nem me dei conta. Quando lembrei de ter saudades, eu já não a tinha mais. Deve ter pulado para outro coração. A tristeza já não mora mais aqui e eu não sei de seu paradeiro. Espero que ninguém encontre. E você, que era meu tudo, simplesmente não é  mais nada. Nada além de um vazio gigante que ficou no lugar de sua partida. Não dói, não fere, nada. Só é estranho, esquisito não ter você aqui me tirando o sono. Essa paz ensurdecedora é nova, preciso me adaptar a ela, afinal, por longo período, a única coisa que conhecia de cabo a rabo era o mal que me fa