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Eu precisava ter...

Eu precisava ter sido a última a ser escolhida para a festa junina durante toda a minha infância.
Eu precisava ter tropeçado na quadra durante a educação física no último ano do Fundamental e feito todos os garotos darem risada.
Eu precisava ter presenciado cenas de agressão física e moral dentro da minha casa.
Eu precisava ter visto minha mãe chorar durante noites a beira da minha cama.
Eu precisava ter deixado uma mala pronta no armário ao longo dos anos, caso precisasse fugir repentinamente.
Eu precisava ter ouvido que eu não podia ir à casa da Vanessa, pois a mãe dela não aceitava colegas com pais separados.
Eu precisava ter sido excluída da lista da festa de debutante da Dai pois não atendia ao padrão estético das outras meninas.
Eu precisava ter me sentido a pior das garotas.
Eu precisava ter enfiado o dedo na garganta diversas vezes, pois tinha ódio do meu corpo e vergonha de mim.
Eu precisava ter me submetido a relacionamentos abusivos por não me sentir digna de algo saudável.
Eu precisava ter chorado baixinho no chuveiro pra minha dor não incomodar.
Eu precisava ter recebido um  não para aquela vaga de emprego, pois meu manequim não era 36 e era exigência da diretoria.
Eu precisava ter sido motivo de aposta para que os garotos "bonitos" pagassem uma prenda.
Eu precisava ter pedido à Deus que me levasse, quando me encarava nua fronte ao espelho e não me enxergava como a moça da revista.
Eu precisava ter perdido amigos. Eu precisava ter perdido chances. Eu precisava ter perdido amores... Pra que eu encontrasse o meu.

Eu precisei padecer, esmiuçar cada dessabor. 
                                                                                UM A UM.
Nessa teia da vida cada linha importa, cada nó tem sentido, cada ponto refuta, cada laço liberta, cada dor tem valor...

Entre remendos, fragmentos, retalhos e estilho, pela primeira vez 
sou inteira.

Todo mal necessário que me trouxe aqui, face a face venturosa comigo e com os meus, foram deveras basilar.

Desvario ou não, foi por meio do NÃO que eu entendi o que é SIM, foi diante da dor que eu aprendi o que é prazer, foi caindo bem fundo que minha única alternativa se tornou levantar, foi chorando abundante que eu aprendi a gargalhar, foi do feio imposto que eu aprendi a me olhar, foi da pungente rejeição que eu aprendi a me amar, foi por desencontros que você veio me achar e agora meu bem, é onde vamos ficar! 
Pois foi levando na cara que eu aprendi a lutar e sofrendo opressão eu decidi me livrar, foi sendo sufocada que eu comecei a gritar, do silêncio que mirra tive voz pra falar e 
esse brado da alma não vão mais calar!



Vital, V.



Comentários

  1. Incrivelmente fodástico e revigorante :3

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  2. Geralmente não enchergamos o relacionamento abusivo, suggar. Ficamos cegos quando apaixonados. Quem vê de fora e já conhece o movimento, vê melhor. Mas, não adianta ninguém alertar. Infelizmente.

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Os queridinhos.

Eu chorei pelo sistema.

Uma tarde fria de um domingo qualquer. Tudo acontecia lá fora como sempre aconteceu. As horas passavam, as pessoas grassavam gozando do seu direito de ir e vir, a fome assentava, o medo imperava, a angústia antecedente a segunda adentrava, enfim... Só mais um dia “normal”. E eu chorei.     Não no sentido poético, não de forma alegórica. [ Foi literal, foi visceral] Venho chorando desde então   - dia após dia -   de forma lancinante e,  desculpem-me a sinceridade, mas um tanto quanto colérica. Eu já chorei com Homero, Virgílio e Cervantes. Também com Drummond, com Flaubert e Assis. Hoje eu choro com Coetzee, Trotsky, Amendola, Bakunin e Marx. {Choro as lágrimas de Brecht.} Choro o sangue de Spies ,Parsons, Fischer e Engel.   Choro  ainda mais pelo João, pelo Zé, pelo Sr. Pedro, pela Dona Maria, pela Luisa, pelo Oswaldo, pelo (...) . Choro pelos meus filhos – pobrezinhos - que nem gerados foram e já estão condenados a exploração. Choro pela injustiça masca

E de repente passa...

E de repente passa... A dor que esmagava o peito, tirava o ar, embrulhava o estômago, passa... A saudade que mastigava, que corroía, que desbaratinava  simplesmente passa... O medo que cegava, que infiltrava, que assombrava... Passa também! E tudo aquilo que achávamos que nos mataria, vai se esvaindo, assim, como um copo trincado que perde lentamente a água e quando nos damos conta, já está vazio. Eu me esvaziei de você e nem me dei conta. Quando lembrei de ter saudades, eu já não a tinha mais. Deve ter pulado para outro coração. A tristeza já não mora mais aqui e eu não sei de seu paradeiro. Espero que ninguém encontre. E você, que era meu tudo, simplesmente não é  mais nada. Nada além de um vazio gigante que ficou no lugar de sua partida. Não dói, não fere, nada. Só é estranho, esquisito não ter você aqui me tirando o sono. Essa paz ensurdecedora é nova, preciso me adaptar a ela, afinal, por longo período, a única coisa que conhecia de cabo a rabo era o mal que me fa