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Olhares

Sou a feminista-autocrata mais romântica do Séc. XXI. 
Desde que comecei a ir de trem para o trabalho, minha percepção aguçou de forma arrebatadora e minha visão se expandiu demasiadamente. Ando por ai, com meus fones de ouvido, distraidamente atenta, absorvendo olhares. Logo pela manhã, consigo ver no rosto de cada um, expressões dissemelhantes e muito peculiares. Adoro sentir o que as pessoas estão sentindo.
Hoje pela manhã, um rapaz (relativamente charmoso e muito, muito cheiroso!) ouvia musica, olhando pela janela do trem, sorria com os olhos, um sorriso bobo e gratuito. Ora outra olhava para o celular, como se esperasse alguma noticia, decepcionado com a falta da mesma, guardava-o no bolso. Por alguns instantes, me levei no devaneio de imaginar o quão aquela pessoa que não mandava mensagem fazia bem para o rapaz cheiroso. A face dele resplandecia, e ele transbordava plenitude. Acredito que inicio de uma nova paixão ou recomeço de uma antiga, não sei, mas era algo que tomava conta dele por inteiro. Fiquei aficionada olhando para ele e ele para o Sol. Quando num entusiasmado salto, ele vibrou com a mensagem tão desejada. Eu vibrei por dentro. Ele gargalhou e recostou o aparelho no peito. Graças a Deus! Ele é correspondido. Desceu em seguida, quase não caminhava, era uma espécie de levitação. O amor faz isso conosco, nos arremessa em uma outra dimensão, onde estamos inerentes ao mundo convencional, vivemos num universo feito a dois e que de alguma maneira ilógica, se transforma numa coisa só. Sorri por ele.

Rostos cansados, mulheres guerreiras, mães de família, que deixaram suas crias para ir a caça, matar leões, engolir sapos e falar cobras e lagartos se precisar. Pessoas sofridas, que conversam em alto tom para espantar a solidão do peito. Homens apressados, atropelando tudo e a todos, em busca de anseios que eles nem discerniram quais são , mas o prazo é curto e doa a quem doer, eles tem que passar. Olhos por todos os lados, os meus cruzando um a um. Alguns me pedem socorro, como se suplicassem clemencia, talvez o simples fato de serem mais do que vistos, literalmente olhados nos olhos, cause esperança de que alguém, mesmo que de longe, se importa. Pudera eu, com uma varinha de condão, tocar a vida de cada um que cruza meu caminho, mas a fada aqui, que é meio bruxa, que prefere preto ao rosa, o rock ao clássico, a cerveja ao invés do chá de flores, precise mais desses olhares, do que eles ao meu. Mas não importa, continuarei olhando, enxergando, absorvendo e de alguma maneira intercedendo por essas faces, marcadas por suas trajetórias, carregando em cada linha, amores e perdas, lutas e glórias, medos e desejos e buscando em cada olhar, os meus lares e me encontrando um pouco na essência de cada qual.





Vital,V.


Comentários

  1. Ao ler tamanha descrição, é como olhar-te os olhos, bem no fundo. Tocar e sentir. Passa a ser palpável algo que não se vê: o interior de uma pessoa. E o lado místico é que com palavras escritas sempre pode-se voltar e reviver, basta ler denovo e denovo. Ficar tocando e sentindo sem parar. O íntimo e o olhar de uma pessoa. Que ao sair de casa toca as pessoas sem elas saberem, mas em algum lugar espiritual esse toque é sentido, em alguma frequência ou dimensão, pois ele é correspondido. Afinal observadora que aqui escreve se enche de energia. É uma ação-reação, causa efeito. Mesmo que inconsciente. Obrigado por escrever.

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  2. Obrigada por ler, eu repito sem cansar!
    Revivi meus textos com você, me resgatei nisso! Obrigada de novo :)

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