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Inquérito

Ela é maluca! - gritava a vizinhança.

Essa garota, nem tão garota, devia se tratar. 
Veja os cantos das unhas roídos. 
Veja!
Ela é pura ansiedade. 
                 Mulheres de verdade são estáveis, comedidas e tranquilas
Ela é pura insegurança. 
                 Mulheres de verdade são resolutas e inteiras, não lhes falta nem um pedaço, nem uma lacuna ou chaga aberta.
Ela é puro desequilíbrio. 
                Mulheres de verdade são discretas, sóbrias e circunspectas. Mantém a pose, o prumo, o salto...


Ela é pura concupiscência escorrendo pelas coxas num cio latente e constrangedor.


Mulher de verdade é recatada, é calada, comportada e doutrinada: 

sensatez,                       mais uma vez 
                                                                                                         -frigidez.

Ela é toda ao contrário, do avesso, escrachada, barulhenta, desbocada, fanfarrona, farofada, topetuda, debochada, arredia, depravada, encrenqueira, afiada, maloqueira, engraçada, meio bruxa, meio fada, meio xucra, indomada, sobe morro, quebra a cara, se expõe, desce a vara, mete o pé, enfrenta os "cara", lê Balzac e a Aghata, escuta funk com Tim Maia, toca Gal e McCarney, rasga o rótulo, veste a capa, quebra o copo, mete a marra, rouba a cena, é furada, enfrenta os dogmas do tabloide mas tem medo de barata. É tão forte quanto Banner sob efeito do raio gama,  não se assuste vizinhança,  chora horrores quando vê propaganda da Natal e a família Doriana. 

Da verdade desenhada sutilmente disfarçada de açúcar, mascarada, dia a dia enfiada pela goela arranhada.

Não importa minha moça se você não é prendada, se seus dedos calejados de caneta e estradas, não conhecem as tarefas femininas vislumbradas. Te dataram, te marcaram, validade mensurada por medidas engendradas nesse sistema marmelada.
Teus defeitos são teus feitos, tua insanidade a verdade, transparência em sentir, legitimam a liberdade. 

é quem quer,                                   
                                                     porque é,          
                                                                                  não aceita o mal - me - quer. 

Teu comando, tua garra atrelados a tua fé.


Não se justifique minha pequena, tu é linda, um poema, deixa pra lá esse dilema, tua grandeza é ser mulher.





Vital.V.


Comentários

Os queridinhos.

Eu precisava ter...

Eu precisava ter sido a última a ser escolhida para a festa junina durante toda a minha infância. Eu precisava ter tropeçado na quadra durante a educação física no último ano do Fundamental e feito todos os garotos darem risada. Eu precisava ter presenciado cenas de agressão física e moral dentro da minha casa. Eu precisava ter visto minha mãe chorar durante noites a beira da minha cama. Eu precisava ter deixado uma mala pronta no armário ao longo dos anos, caso precisasse fugir repentinamente. Eu precisava ter ouvido que eu não podia ir à casa da Vanessa, pois a mãe dela não aceitava colegas com pais separados. Eu precisava ter sido excluída da lista da festa de debutante da Dai pois não atendia ao padrão estético das outras meninas. Eu precisava ter me sentido a pior das garotas. Eu precisava ter enfiado o dedo na gargant a diversas vezes, pois tinha ódio do meu corpo e vergonha de mim. Eu precisava ter me submetido a relacionamentos abusivos por não me sentir dign

Eu chorei pelo sistema.

Uma tarde fria de um domingo qualquer. Tudo acontecia lá fora como sempre aconteceu. As horas passavam, as pessoas grassavam gozando do seu direito de ir e vir, a fome assentava, o medo imperava, a angústia antecedente a segunda adentrava, enfim... Só mais um dia “normal”. E eu chorei.     Não no sentido poético, não de forma alegórica. [ Foi literal, foi visceral] Venho chorando desde então   - dia após dia -   de forma lancinante e,  desculpem-me a sinceridade, mas um tanto quanto colérica. Eu já chorei com Homero, Virgílio e Cervantes. Também com Drummond, com Flaubert e Assis. Hoje eu choro com Coetzee, Trotsky, Amendola, Bakunin e Marx. {Choro as lágrimas de Brecht.} Choro o sangue de Spies ,Parsons, Fischer e Engel.   Choro  ainda mais pelo João, pelo Zé, pelo Sr. Pedro, pela Dona Maria, pela Luisa, pelo Oswaldo, pelo (...) . Choro pelos meus filhos – pobrezinhos - que nem gerados foram e já estão condenados a exploração. Choro pela injustiça masca

E de repente passa...

E de repente passa... A dor que esmagava o peito, tirava o ar, embrulhava o estômago, passa... A saudade que mastigava, que corroía, que desbaratinava  simplesmente passa... O medo que cegava, que infiltrava, que assombrava... Passa também! E tudo aquilo que achávamos que nos mataria, vai se esvaindo, assim, como um copo trincado que perde lentamente a água e quando nos damos conta, já está vazio. Eu me esvaziei de você e nem me dei conta. Quando lembrei de ter saudades, eu já não a tinha mais. Deve ter pulado para outro coração. A tristeza já não mora mais aqui e eu não sei de seu paradeiro. Espero que ninguém encontre. E você, que era meu tudo, simplesmente não é  mais nada. Nada além de um vazio gigante que ficou no lugar de sua partida. Não dói, não fere, nada. Só é estranho, esquisito não ter você aqui me tirando o sono. Essa paz ensurdecedora é nova, preciso me adaptar a ela, afinal, por longo período, a única coisa que conhecia de cabo a rabo era o mal que me fa