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Não posso fazer nada.


Ela estava chorando de fronte ao espelho.
Eu entrei, me dirigi a pia, deixei a necessaire em um canto. A olhei pelo reflexo, com ar desconfiado. Ela lavava o rosto com tanta força, que me dava a sensação de estar tentando arrancar pela pele, tudo aquilo que lhe valiam as inúmeras lágrimas.
Fui ao banheiro em silêncio, como se não quisesse que meus pensamentos atrapalhassem a dor dela.
Retornei ao espelho, e enquanto lavava as mãos, ainda acompanhava o processo- ou tentativa – de melhora e recomposição daquela jovem. Ela estava brava com aquela lágrima que insistia em rolar, pesada, tão pesada quanto a barra que ela devia estar segurando. Ela era forte, dá pra saber quando não  quer entregar-se. É um choro doloso, contrariado, contraído,  constantemente sabotado. Eu sentia cada segundo mais, que ela não podia sentir tudo aquilo. Mas não fazia sentido. Estava ali, estava aberto, estava doendo e doendo muito. Os suspiros silenciados eram ensurdecedores, as mangas molhadas gelavam-me por dentro. Havia ali, na minha frente, alguém com dor, alguém sozinho, alguém cansado, alguém corajoso, alguém... Era alguém. As  pessoas entravam e saiam como se nada estivesse acontecendo, como quando pulam um mendigo na rua, aumentam o som para não ouvir uma briga, desviam o olhar ao deparar-se  com alguma anomalia, enfim... Era alguém, invisível como um ninguém, incomodando por sua dor e pela total incapacidade das pessoas de não fazerem nada.
Um abraço. Um copo d’água. Um olhar direto. Uma pergunta... Nada.
É mais fácil não ver, é mais fácil abstrair, é mais fácil não se envolver.
E mais vazio também.
Cheguei bem perto daquela moça e disse cuidadosamente: “Você está bem?”
Ela recolheu rapidamente suas coisas espalhadas e disse em tom seco: “Estou ótima. Obrigada!”. Saiu sem – me – olhar para trás.






Vital,V.

Comentários

Os queridinhos.

Eu precisava ter...

Eu precisava ter sido a última a ser escolhida para a festa junina durante toda a minha infância. Eu precisava ter tropeçado na quadra durante a educação física no último ano do Fundamental e feito todos os garotos darem risada. Eu precisava ter presenciado cenas de agressão física e moral dentro da minha casa. Eu precisava ter visto minha mãe chorar durante noites a beira da minha cama. Eu precisava ter deixado uma mala pronta no armário ao longo dos anos, caso precisasse fugir repentinamente. Eu precisava ter ouvido que eu não podia ir à casa da Vanessa, pois a mãe dela não aceitava colegas com pais separados. Eu precisava ter sido excluída da lista da festa de debutante da Dai pois não atendia ao padrão estético das outras meninas. Eu precisava ter me sentido a pior das garotas. Eu precisava ter enfiado o dedo na gargant a diversas vezes, pois tinha ódio do meu corpo e vergonha de mim. Eu precisava ter me submetido a relacionamentos abusivos por não me sentir dign

Eu chorei pelo sistema.

Uma tarde fria de um domingo qualquer. Tudo acontecia lá fora como sempre aconteceu. As horas passavam, as pessoas grassavam gozando do seu direito de ir e vir, a fome assentava, o medo imperava, a angústia antecedente a segunda adentrava, enfim... Só mais um dia “normal”. E eu chorei.     Não no sentido poético, não de forma alegórica. [ Foi literal, foi visceral] Venho chorando desde então   - dia após dia -   de forma lancinante e,  desculpem-me a sinceridade, mas um tanto quanto colérica. Eu já chorei com Homero, Virgílio e Cervantes. Também com Drummond, com Flaubert e Assis. Hoje eu choro com Coetzee, Trotsky, Amendola, Bakunin e Marx. {Choro as lágrimas de Brecht.} Choro o sangue de Spies ,Parsons, Fischer e Engel.   Choro  ainda mais pelo João, pelo Zé, pelo Sr. Pedro, pela Dona Maria, pela Luisa, pelo Oswaldo, pelo (...) . Choro pelos meus filhos – pobrezinhos - que nem gerados foram e já estão condenados a exploração. Choro pela injustiça masca

E de repente passa...

E de repente passa... A dor que esmagava o peito, tirava o ar, embrulhava o estômago, passa... A saudade que mastigava, que corroía, que desbaratinava  simplesmente passa... O medo que cegava, que infiltrava, que assombrava... Passa também! E tudo aquilo que achávamos que nos mataria, vai se esvaindo, assim, como um copo trincado que perde lentamente a água e quando nos damos conta, já está vazio. Eu me esvaziei de você e nem me dei conta. Quando lembrei de ter saudades, eu já não a tinha mais. Deve ter pulado para outro coração. A tristeza já não mora mais aqui e eu não sei de seu paradeiro. Espero que ninguém encontre. E você, que era meu tudo, simplesmente não é  mais nada. Nada além de um vazio gigante que ficou no lugar de sua partida. Não dói, não fere, nada. Só é estranho, esquisito não ter você aqui me tirando o sono. Essa paz ensurdecedora é nova, preciso me adaptar a ela, afinal, por longo período, a única coisa que conhecia de cabo a rabo era o mal que me fa