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Oito do três.

Ela está mal humorada, o shampoo novo que prometia o liso absoluto deixou seu cabelo pesado, com um aspecto oleoso logo após a lavagem.
O dia no escritório já começou quente, mas o café que demorou 30 minutos pra sair não. Pelo menos o cookie não decepciona e dá uma segurada na onda.
Relatório não está como gostaria, mas passou a noite com cólicas terríveis e entre bolsas térmicas, planilhas e analgésicos, fez o que deu.
Reunião as 09:00, salto quebrou . Merda. Caminhando disfarçadamente numa meia ponta de pé, entra com jeito para não arrepiar os acionistas com o barulho alucinante do seu quase salto.
Senta na ponta da mesa, abre seu laptop e inicia a reunião. Conduz cheia de propriedade, apresenta o cenário financeiro e indica os próximos caminhos a serem tomados, enquanto arranca compulsivamente a cutícula  e descasca a ponta do esmalte. Ao levantar-se percebe sua meia calça desfiada e entre a angustia do ocorrido e a satisfação do bom trabalho apresentado, retoma para sua sala disposta a tocar o resto do seu dia.
Prende os cabelos num coque torto, tira os sapatos em baixo da mesa discretamente, passa  esfoliante nas mãos, liga na lanchonete pedindo um suco verde, de sempre... Ah, inclui dois donuts no pedido por favor?
Responde uma penca de e-mails enquanto agenda o periódico. Que saco, está chegando o dia da mamografia. Remarca o resto das reuniões, cancela o pilates porque a cólica piorou.
Corre pra casa, mas o transito está desgraçado, tem um babaca fechando o carro dela, gritando que lugar de mulher é na cozinha. Hoje não é um bom dia meu amigo; já lhe dá o dedo e o manda a merda, grita mais alto ainda, que lugar de otário é no pasto e não atrás de um volante. Para pra comprar mais analgésicos, vê o lançamento novo da Revlon; compra os dois. Passa no mercado, a ração do gato, quase ia esquecendo.
Por fim chega em casa, desmonta-se inteira, deixa o saia grafite ao lado da armadura. Se joga no sofá. Fica angustiada por não ver resposta a mensagem enviada as 11:15 da manhã. Abre a conversa, ele está online. A angustia só aumenta. Decide ligar um filme enquanto pede comida chinesa. Lê seu livro da Líbia, enquanto responde os últimos e-mails, um olho no filme, outro no gato – literalmente. Adormece.
Ser mulher é carregar dentro de si um universo de sentimentos e possibilidades, quase incompreensíveis – até por elas mesmas- e ainda assim ser sã.
É a capacidade de resiliência e auto superação maior que o impulso de ser impulsiva. É o dom da regeneração  e do doar-se que desafia a ciência.
Enfim, mulher, é a beleza da simplicidade física embargada por toda a complexidade do universo. O universo feminino.
Salve, salve 08 de Março, salve, salve oito do três.




Vita, V.

Comentários

  1. "Ser mulher é carregar dentro de si um universo de sentimentos e possibilidades, quase incompreensíveis – até por elas mesmas- e ainda assim ser sã".

    Muito eu este texto!
    Arrasou V.
    Bju

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